quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fenomeno Obama

Para entender o impacto do fenômeno Barack Obama no imaginário do militante americnao, uma carta recebida pelo comentarista Lücio Ásfora, de uma brasileira que caiu de cabeça na campanha:

Com bastante atraso, sento no teclado para agradecer os muitos votos de parabéns que recebi na semana passada. O choro não está mais à flor da pele, como nos primeiros dias após a eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos.

Quando, no dia 04, anunciaram que ganhamos Wisconsin, não foi choro que veio mas alegria pura, alívio total, exaltação. Pulamos, gritamos, nos abraçamos. Quando no dia seguinte soube que ganhamos Wisconsin, 52% a 46%, vieram as lágrimas outra vez. Afinal, Kerry levou o estado de Wisconsin em 2004 por uns 13.000 votos. Desta vez, foi por 420.000. Eis a diferença entre votar contra Bush e votar a favor de um candidato que inspira, que emociona.

Quando soube que ganhamos aqui no condado de Dane por 73% dos votos, chorei. Quando li no jornal que decretaram feriado nacional no Quênia, também chorei. Quando, pela vigésima vez, vi Obama discursando em Chicago na noite das eleições, pela vigésima vez vieram as lágrimas. Quando ouvi na rádio, pela primeira vez, alguém falar “president-elect Obama”, chorei (e todo mundo nas estações que escuto encontra desculpa para encher a boca e pronunciar essas palavras).

Quando recebi as mensagens de parabéns “aos Estados Unidos e ao povo americano”, chorei. E quando uma amiga na Rússia mandou “como presente” a letra completa da música de John Lennon Imagine there’s no countries…lágrimas não bastavam, caí no pranto.

Pela primeira vez desde o dia 11 de setembro de 2001, senti o mundo solidário com os Estados Unidos, e dessa vez não por razões trágicas, mas triunfantes.

Como não sou dada a sentimentos de orgulho, não posso dizer que cheguei a sentir orgulho do meu país, mas pela primeira vez em muitos anos, não senti vergonha de ser “American”. Mais espantoso para mim, essas palavras que sairam da minha boca sem convite: “meu país” (Está bem: um dos meus países!). A vitória de Obama, a vitória de milhões de norte-americanos, me ajudaram a aceitar esse acidente de nascença que chamamos de nacionalidade.

Tantas ‘primeiras vezes’ aconteceram juntas, grandes e pequenas, e nós aqui, nós que trabalhamos tanto para esse resultado, passamos vários dias em estado de choque, de euforia, de choro à flor da pele, de esperanças renovadas.

Começando pelo óbvio:


Pela primeira vez, os Estados Unidos elegeram um presidente negro.

Uma das perguntas feitas muitas vezes nos meses dessa campanha, foi: “Será que os Estados Unidos estão prontos a eleger um presidente negro?” Quando me dou conta de que não só fomos capazes dessa façanha sábia, mas que (por favor me corrijam se eu estou errada) somos a única nação de maioria branca no mundo a eleger membro de uma minoria como presidente, volto à sensação de estar vivendo um sonho, a minha sensação talvez algo ingênua de que um mundo melhor é sempre mais possível do que nossas amarguras nos permitem acreditar.

Pela primeira vez em época de guerra, os Estados Unidos elegeram um presidente que é contra a guerra.

Pela primeira vez, ouço da minha querida amiga Lyuda, na Rússia, que ela tem inveja de mim por eu morar nos EUA. Lyuda, que nunca quis conhecer esse país, que ama apaixonadamente sua pátria, mesmo reconhecendo muitos defeitos, que me falou em 2000, após a primeira eleição de Bush: “Não precisa ter vergonha; nós também sabemos como é ter um presidente burro”. Lyuda agora me diz ter inveja de eu poder votar e eleger um candidato que reflete a vontade do povo.

Pela primeira vez na vida dela, uma prima brasileira minha rezou para que um candidato fosse eleito à presidência.

Pela primeira vez na vida dela, uma prima minha norte-americana deu dinheiro para um candidato político. Aliás, como sabem, foi o caso com muitos eleitores.

A campanha foi construída em cima de gente do campo da “primeira vez”. Isso inclui até a Joan Baez, que pela primeira vez, apoiou candidato em campanha presidencial.

[Baez em entrevista à CNN: I've never seen this country this politically charged. I realized something this morning. I was watching Obama on TV and I thought, "I really love this guy." I love what he's capable of, I love that he's genuine. He's a statesman, and he's brilliant. People say do you think he can change America? He already has. ...]

Não foi uma vitória do partido Democrata mas das “Obama Mamas”, dos eleitores de primeira viagem (dois terços dos quais votaram em Obama), da senhora de 81 anos que fazia campanha de porta-em-porta com a filha, até uma semana antes da eleição, quando ela foi diagnosticada com câncer e, muito contrariada, teve que parar (não é folclore, ouvi da boca da filha).

Nas trincheiras foi assim: “community organization at its best”. Uma sede central em Madison, com a cidade dividida em equipes de bairro e, só Deus sabe por quê, designadas por cor. Aqui, no canto sudoeste da cidade (que é capital do estado e sede da University of Wisconsin, com 50.000 alunos), fizemos parte da equipe azul, e nos batizamos os “Barack Blues”. A maioria do pessoal da sede eram jovens contratados pela campanha (“contratados” talvez dê uma impressão errada, na medida em que não receberam tanto dinheiro quanto uma bela entrada a mais no currículo). Fora deles, todos voluntários. Desde agosto, como membros dos Barack Blues, fazíamos uma breve reunião cada terça-feira para discutir a campanha; cada quarta-feira, havia uma noite de “phone banking” (atividade em que o próprio Obama participou, até no dia 04, ligando para eleitores) e cada fim de semana, fazíamos rodadas de porta-a-porta, para identificar eleitores de Barack ou convencer os indecisos.

O elenco do nosso bairro: várias aposentadas e alguns aposentados, a maioria novatos na política. Um garoto com insuficiência cardíaca, que andava de Segway. Todas as faixas etárias (um pai que levava os filhos adolescentes juntos; uma mãe que levava os filhos pequenos). E todo sábado aparecia mais alguém que ia fazer o “canvassing” (porta-a-porta) pela primeira vez na vida.

No “canvassing”, perguntamos aos não-decididos qual o problema nacional que mais os preocupava e, a partir da resposta, explicamos porque acreditávamos que Barack seria mais capaz de enfrentar a questão, falando da forma mais pessoal possível.

“As ordens” foram claríssimas: nada de bate-boca com gente que apoiava McCain, nada de debate agressivo, mas tudo no sentido de procurar terreno comum. Ah sim, e após a indicação de Sarah Palin, nem tocar no nome dela, mas controlar nossa vontade de criticá-la.

Enfim, era para nós seguirmos o exemplo do próprio Barack, que se recusou a baixar o nível até o final, apesar de eu e muito outros acharem em certos momentos que era isso mesmo que precisava fazer. Outra vitória para a dignidade: ele nos provou errado. Como é bom ser errado de vez em quando.

Nas últimas semanas, redobramos nossos esforços nos telefones, desta vez não só procurando persuadir os indecisos, como também conseguir voluntários para os últimos 4 dias da campanha, quando foi feito o maior esforço de arregimentação de votos (Get Out the Vote, ou GOTV) na história política norte-americana.

Um aparte: indecisos? Um mês antes da eleição? Depois da indicação da Sarah Palin? Que gente é essa? Só podia ser burro, né? Pois uma dessas indecisas foi uma jovem mãe que estava estudando as plataformas dos dois candidatos a fundo, surfando a Internet, lendo tudo a respeito. De nós, queria saber mais sobre o plano de impostos. Batendo papo com ela na calçada, a vizinha do lado, fã de Barack, entrou na conversa e eu e Michael fomos embora confiantes de que a própria vizinha ia continuar o trabalho que nós começamos.

Outro indeciso foi um sujeito de uns 40 anos que ficou nos ‘testando’, numa conversa que durou quase meia hora. “Desenvolver energia alternativa vai demorar anos. Obama está errado em rejeitar desenvolvimento de campos offshore”. “Sarah Palin, afinal, foi eleita governadora, tem uma boa experiência executiva como prefeita”. E assim foi. Difícil não desesperar em certas horas, não gritar, “Ser prefeita de uma cidade de 5.000 habitantes não significa *** nenhuma de experiência executiva, sua idiota!” Em vez disso, dizer (como Michael disse): “Fui criado e passei boa parte da minha vida numa cidade de 5.000 pessoas. Conheci todos os prefeitos durante esse tempo. Foram pessoas boas, que eu respeitava. Mas nenhum deles seria capaz de governar o país”. Pois às vezes foi isso: passar além da histeria para dizer o mais-do-que óbvio numa voz calma, ao nível pessoal, ao nível que fazia o interlocutor também pensar em termos pessoais (quem é que não conhece alguém prefeito de interior nesse país de interior?)

Só duas coisas estavam meio raras durante a campanha aqui no meu bairro: membros registrados do Partido Democrata e afro-americanos.

Moramos num estado e numa cidade brancos, onde somente 6% da população é negra (comparada com 12,8% para os EUA como um todo). Um bom número dos afro-americanos na cidade de Madison -- ou seja, cerca de 12.000 pessoas -- moram num bairro só. (Preciso dizer que é o mais pobre e inseguro da cidade?). Desde agosto, acredito não ter falado com mais de duas dezenas de pessoas de cor na campanha, incluindo as casas visitadas.

Foi só no dia 04 de novembro que me dei conta de que éramos um bando de brancos trabalhando para eleger um negro.

Porque não éramos: éramos pessoas trabalhando para eleger um homem que enxerga o que temos em comum uns com os outros, não o que nos divide; um homem que sabe sermos todos de cor: alguns de cor negra, outros de cor vermelha, outras de cor branca. Outro espanto desse processo, outra razão para festejar esse momento da história.

Pela primeira vez, não há mais racismo nos EUA.

Sim, declaração absurdamente apócrifa. Mas estamos curtindo uns dias de achar tudo um pouco mais perto do possível, de achar que podemos ser melhores do que sempre fomos.

Elegemos o primeiro presidente negro. E atualmente só temos um senador e um governador afro-americanos. Avançamos por polegadas e por pulos quilomêtricos.

Como eu não tenho assinatura a jornal, no dia 05, saí a procura de um com aquela manchete [!]. Pela primeira vez na minha vida, não encontrei jornal nenhum nas bancas – nenhum “Wisconsin State Journal”, nem “Milwaukee Sentinenal”, nem “Chicago Tribune”, muito menos “New York Times”. Quando entrei na loja de conveniência, veio uma mulher logo atrás, dando grito de desespero. Vendo minha cara de igual decepção, e meu button de Obama, ela disse que já tinha procurado pelo bairro inteiro. Estávamos as duas pulando de energia. Reclamamos que não decretaram feriado nacional. Saímos juntas, felicíssimas de estarmos sofrendo essa frustraçãozinha.

Fui então à farmácia, perguntando pelo jornal. A caixa, uma linda moça negra, me explicou que já havia fila na porta quando a loja abri de manhã e que levaram todos os jornais. Quando ela me perguntou onde eu havia conseguido o button de Obama, eu disse que tinha mais em casa, e dei para ela. E pela primeira vez, ficamos batendo um papo demorado. Ela me estava falando da felicidade dela em saber que a filha, de 4 anos, poderia um dia abrir um livro de história e ver…e aí parou, olhou para minha cara e não sabia como terminar. Talvez lembrando-se dos ataques feitos à Michelle Obama, depois dela ter declarado durante as eleições primárias, que “pela primeira vez, senti orgulho de meu país”. Pela enésima vez, eu e a moça lembramos que habitamos mundos circunvizinhos porém distintos. Sim, ela sabia que eu apoiava Obama, mas e daí? Até que ponto eu poderia entender os sentimentos dela nesse momento?

Como foi a emoção, o sentimento, de um afro-americano ao ver um negro eleito presidente? O que passou pela cabeça, pelo coração? Aquele rapaz de 15 anos num bairro pobre, que só ouve “não pode” da sociedade? Podemos nos emocionar com as caras e as lágrimas de Jesse Jackson e Oprah Winfrey, e certamente com a letra de Will.I.Am em “It’s a New Day”: I went to sleep last night tired from the fight. I’ve been fighting for tomorrow all my life. Yeah, I woke up this morning feeling brand new, cause the dreams that I’ve been dreaming has finally came true). Afinal, desde os anos sessenta, batalhamos por um dia novo, e tivemos nossas conquistas, como foi a campanha pelas diretas já. Mas a experiência negra americana é sui generis.

Whoopi Goldberg, no programa The View, falou mais ou menos assim: “sempre me senti americana, com toda a promessa desse país. Nunca senti que eu não pertencia. Mas de repente, depois de anunciada a vitória de Obama, tive a sensação que finalmente eu podia largar a minha mala”.

No nível socio-cultural, só posso respeitar as palavras da Whoopi sem entendê-las ao fundo. Porém, no nível pessoal, reconheço-me, e, egoisticamente, dou-me conta de que essas eleições me trouxeram um ganho inesperado. Pela primeira vez, desde que saí do Brasil em 1999, e apesar das imensas saudades com as quais convivo diariamente, finalmente posso largar minha mala também. Pela primeira vez, sinto-me em casa neste país que fiz meu."